Distância entre discurso do ministro da Economia e seus atos afasta governo da transparência e do liberalismo que pregou na campanha e, segundo o jurista, torna as manobras fiscais ainda “mais graves” que as praticadas por Dilma Rousseff.

O jurista Valdir Simão tem exatamente o perfil que Jair Bolsonaro, durante sua campanha, garantiu que estaria em seu governo. Sem padrinhos políticos, com boas contribuições ao Estado e uma pauta coletiva que atravessou sua trajetória. Com mais de três décadas dentro do funcionalismo público, começou como auditor fiscal e chegou a ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), onde regulamentou a Lei Anticorrupção e definiu os termos dos programas de compliance e acordos de leniência.Também presidiu o INSS e foi secretário-adjunto da Receita Federal. Tudo isso antes de seu último cargo público, interrompido em 2016, como ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo Dilma Rousseff. Desde então ele, que é sócio da Warde Advogados, tem adotado a postura de observador da República. Sobre o Brasil de hoje não são poucas a impressões: pioramos no quesito transparência e capacidade de fiscalização; erramos na condução dos gastos públicos; perdemos a mão em reformas absurdas e entramos em um ciclo de muita desconfiança, medo e pouco resultado.

DINHEIRO – Como o senhor avalia o descumprimento do teto de gastos proposto pelo atual governo, visto que essa limitação foi criada logo após sua saída do Ministério do Planejamento no governo Dilma Rousseff?
VALDIR SIMÃO – É importante ter um controle de gastos, mas ele tem de ser compatibilizado com as necessidades de gastos do Poder Público e com medidas que são essenciais para a sociedade, como no caso da calamidade de uma pandemia. Então, é muito difícil responder objetivamente a uma questão assim. Sou favorável, sim, ao controle de gastos e ao respeito às metas fiscais, mas que não seja uma camisa de força para toda e qualquer situação.

Então por que o mercado reagiu tão mal ao descumprimento do teto de gastos?
O problema não está só no estouro do teto, mas nas intenções por trás disso. Está mais do que evidente que, pela forma que o governo agiu, tudo não passa de uma manobra para ter sobras para o pagamento do Auxílio Brasil em ano de eleição. A partir do momento que se estabelece regras de controle de gastos, qualquer mudança ou descumprimento precisa ser muito bem explicado. O que o governo está tentando fazer, inclusive utilizando a PEC dos Precatórios, foi percebido como manobra. Como contabilidade criativa. E certamente o mercado reagiu mal porque não houve justificativa convincente.

Mas foi o mesmo que a presidente Dilma fez… A situação agora não é a mesma?
A situação agora é pior porque há uma insegurança enorme e não há, do ponto de vista da aplicação de medidas de gerenciamento da crise, uma coordenação do governo, apesar da maior concentração de poder que existe no Brasil hoje. Na concentração das decisões no presidente e na concentração de decisões no Ministério da Economia e na pessoa do seu ministro.

“A reação negativa do mercado financeiro não se deu apenas em função do estouro do teto, mas nas intenções atrás disso” (Crédito:Renato S. Cerqueira)

Essa concentração prejudica?
O Brasil não tem uma equipe econômica. Tem uma “euquipe” econômica. O grande problema é que não temos hoje um Ministério da Economia com capacidade de convencimento. Ao mesmo tempo em que Paulo Guedes se fortaleceu concentrando funções de outros ministérios, ele perdeu interlocução. Muito difícil um só ministro convencer toda uma estrutura de governo, outros ministérios que também dependem do dinheiro público e que, por razão óbvia, sempre querem mais recursos orçamentários. A incapacidade do governo e do Ministério da Economia e a indisciplina fiscal passam uma imagem muito ruim do Brasil para todos. A mensagem é que, apesar de ser importante gastar mais do ponto de vista social, para o governo vale tudo em ano de reeleição.

O governo faz certo ao propor um aumento do Auxílio Brasil ? Seria possível sem furar o teto?
Foram apresentadas ao governo várias sugestões para custear o aumento do Auxílio Brasil sem descumprimento do teto. Não sou contra o governo garantir um auxílio emergencial extra teto numa situação de calamidade. A própria PEC do Teto de Gastos permite que, em situações excepcionais de calamidade pública, o governo tenha gastos fora do limite. Mas não é o caso agora. O que deveria ser feito é manter o auxílio emergencial dentro do valor inicialmente planejado, dentro das capacidades do governo, sem transformar isso numa questão associada à pandemia. A melhor medida a ser tomadaseria mais uma prorrogação ao Auxílio Emergencial para apaziguar a situação de dificuldade que as pessoas estão passando, até que se restabeleça o ambiente de crescimento do mercado de trabalho, sem misturar isso com a mudança do Bolsa Família. Ao juntar algo que deve ser temporário com algo que já é permanente, se criaram dúvidas sobre a sustentabilidade desse novo programa. Foi uma confusão desnecessária.

Mas a ideia é ser mais assistencialista do que os governos anteriores, não é?
É outra coisa ruim. A contradição de discursos. Por um lado, defendia a austeridade fiscal, que sempre esteve verbalizada pelo ministro da Economia. Por outro, uma mudança das regras do jogo via PEC. Uma clara manobra política. Então, o governo teria alternativas, respeitando o teto de gastos. A debandada de membros do Ministério da Economia mostra que o poder de convencimento de Guedes não está funcionando nem dentro de casa.

A situação se agravou com a proposta de calote nos precatórios?
Sim, é outra medida muito ruim. São dívidas já julgadas judicialmente. Deixar de pagar dívidas judiciais para ter uma sobra orçamentária reforça a percepção de que o governo não tem mais de onde tirar dinheiro. Começa com precatório. Daqui a pouco, vai ser alguma outra despesa obrigatória. O que não se vislumbra é uma estratégia adequada para que o Brasil consiga recuperar sua capacidade de investimentos públicos e garanta a sustentabilidade da execução orçamentária e financeira. O que estamos vendo é uma tomada de decisão voluntarista e sem nenhuma estratégia de longo prazo.

Então falta mais transparência do governo?
Olha, o governo possui mecanismos muito eficientes de controle e transparência. São bastante profissionais e competentes. As nossas estruturas funcionam muito bem. Preciamos que registrar que a Controladoria Geral da União (CGU) é um órgão de excelência. E ela tem feito seu dever de casa. Está fiscalizando, gerando seus relatórios de auditoria com muita qualidade, processando acordos de leniência e tudo mais. A parte que houve retrocesso é, sem dúvida, a da transparência. Algumas decisões do governo passam a imagem de que estamos andando para trás nesse quesito. Uma delas é o chamado orçamento secreto, em que não se tem clareza dos critérios de distribuição dos recursos, se há ou não participação do Poder Executivo, quais parlamentares irão receber esses recursos e quais os valores envolvidos. Isso vai contra a agenda de enfrentamento da corrupção e de aumento da transparência.

Ao pregar mais transparência e mais enfrentamento à corrupção, o governo Bolsonaro cometeu estelionato eleitoral?
Prefiro pular essa pergunta. O que há, notadamente, é uma contradição entre o discurso da área econômica e as práticas do governo.

A proposta de reforma administrativa apresentada pelo goverte agrada?
É lamentável. Não acredito que essa PEC vai prosperar porque ela tem problemas graves. Não enfrenta os problemas reais da gestão pública. O resultado final não será bom para a qualidade dos serviços públicos. Não vejo que a proposta tenha como objetivo qualificar e profissionalizar melhor a gestão. E mais que isso. Critérios de seleção para funções de confiança não foram nem trabalhados nessa proposta. Terceirizar algumas atividades, como a análise de liberação de benefícios do INSS, pode trazer risco para a qualidade do serviço público e comprometer a probidade. Ou seja, haverá mais espaço para desvios de recursos públicos com essa reforma.

“É legítimo que a atuação do Executivo seja consertada pelos demais Poderes, o problema é usar essa força para fins não republicanos” (Crédito:Pablo Valadares)

Os anos de administração petista ajudaram a criar esses problemas do funcionalismo público que hoje precisam ser consertados?
Fui presidente do INSS por duas vezes e sei bem como as coisas são lá dentro. Resolvemos os problemas das filas. Também qualificamos melhor a gestão. Conseguimos estruturar melhor as carreiras. Mas, claro, o Brasil tem desafios enormes. Esses desafios precisam ser objetos de um planejamento de longo prazo. O que não há no Brasil. Não sabemos que País queremos para daqui 20 ou 30 anos e como nos devemos mobilizar para alcançar os objetivos que desejamos. A falta de planejamento de longo prazo faz com que a energiaw consumida em cada instância do governo seja desmedida.

A escalada do Legislativo e do Judiciário em áreas que seriam atribuição do Executivo revela que há uma espécie de parlamentarismo enrustido em curso?
É legítimo que a atuação do Executivo seja consertada pelos demais poderes, principalmente para proteger a transparência, o respeito às contas e outros assuntos de benefício da nação. O grande problema é quando se utiliza da força de um poder importante como a do Parlamento para fins não republicanos. Mas é importante lembrarmos que a Casa para se discutir e definir políticas pública é o Congresso, e depois implementadas pelo Poder Executivo Federal. Essa é a essência da democracia.

E o Judiciário?
O Supremo Tribunal Federal tem que ser visto como exatamente ele é. Um guardião da Constituição Federal. É um poder importantíssimo que traz estabilidade jurídica ao País. O sistema de justiça, quando funciona bem, coopera com a atração de investimento, com o crescimento econômico e com o avanço social. Portanto, vejo que houve um fortalecimento do sistema judiciário.